O grande e verdadeiro amor

“…

por João Mellão Neto Em 02 Apr 2010

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Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos têm ódio, orai por aqueles que vos perseguem…”
Sermão da Montanha – Jesus Cristo

Jesus proferiu essas palavras alguns dias antes de morrer, quase dois mil anos atrás. Muitas religiões nasceram e morreram antes e depois de sua passagem. Mesmo aqueles que não professam a fé cristã hão de admitir que ela tem algo de sagrado e divino, eis que venceu o implacável teste do tempo. Mais de 80 gerações se sucederam e a cristandade sobrevive. Ela abrange mais de um terço da humanidade.

A teologia cristã não é de todo original. Sua base é o judaísmo, muitos dos seus elementos vêm do zoroastrismo, cinco séculos anterior a Jesus. Não ouso explicações. A fé se justifica unicamente por si mesma. Mas, se as palavras de Cristo permanecem vivas e presentes, se ainda são capazes de encantar e converter os homens modernos é porque há nelas uma mensagem extremamente poderosa, algo que transcende todas as nossas filosofias e crenças do cotidiano.

A Paixão de Cristo, o seu trágico sacrifício compõe um enredo por demais chocante para que não sensibilize o mais frio dos mortais. Mas a História está repleta de heróis, muitos milhares também padeceram em suplício. Por que Cristo, e somente ele, comove até hoje as multidões? Por que ele era filho de Deus? Ora, inúmeros outros messias também se arvoraram tal paternidade. Por que só nele a creditamos como autêntica?

Talvez a resposta esteja no ensinamento em epígrafe.

Cristo pregava o amor, como inúmeros outros sábios também pregaram o amor. Mas o amor de Cristo era diferente. De tão amplo, abrangente e sublime, é um nível de amor cuja grandeza só pode ter emanado de um Ser Superior. É o verdadeiro amor de Deus, enunciado somente por Ele, que se fez homem para transmiti-lo aos mortais. Nenhum outro profeta, em toda a História, fez uma proposta semelhante.

Se amar, em si, já é difícil, o que dizer de amar até mesmo os nossos desafetos? Isso é humanamente possível?

Aqui se segue uma tímida tentativa de compreensão.

O amor se eleva em três níveis.

O primeiro é o amor-mito de que nos fala Aristófanes, no Banquete de Platão. No início dos tempos, nossos ancestrais eram duplos, possuíam ambos os sexos e compunham uma unidade perfeita. Por ousarem confrontar os deuses, estes os puniram, cortando-os em duas metades incompletas. Passamos nossa vida tentando recompor essa unidade, tentando fundir dois seres num só e, assim, voltar à completude, que é a condição da felicidade. Essa busca de união, para Aristófanes, é a essência do amor.

Talvez seja a essência do amor romântico. Mas o amor é muito mais do que isso. Esse amor é profundamente egoísta e possessivo. Que amor é esse no qual preferimos ver nossa amada morta a vê-la feliz nos braços de outrem?

Há um segundo nível, mais altruísta e desprendido. É o amor desinteressado e incondicional que os pais têm pelos filhos, que os casais mais antigos nutrem entre si e que os verdadeiros amigos cultivam. É um amor que, se preciso, implica renúncia. O bem do outro é o nosso bem, a felicidade do outro nos faz felizes. Este amor é mais sublime, pois não envolve cobiça, posse ou submissão. Amamos os outros como eles são e a nós nos basta saber que eles nos amam também. Não se trata mais de paixão voraz de Aristófanes, mas sim de um sentimento plácido, suave e permanente. Este seria o verdadeiro e mais elevado nível de amor.

Mas Cristo nos pede mais. Este amor altruísta é belo, é puro, é imenso na sua natureza, mas muito restrito no seu alcance. A quantas pessoas, no mundo, somos capazes de dedicar este amor? Aos nossos filhos, aos nossos pais, ao nosso parceiro, a algumas dezenas de amigos sinceros? E os nossos outros bilhões de irmãos? Ficam todos de fora? Não, o amor altruísta, apesar de sublime, não é ainda o amor maior.

O grande amor, o amor cristão, há de ser um amor universal, um sentimento que abranja a todos. Um forte laço de solidariedade nos une por que somos todos semelhantes em nossa fragilidade e fraqueza; porque, não obstante nossas discordâncias somos todos igualmente humanos, mortais e filhos legítimos de Deus.

Nosso amor pelo próximo se dá por reflexo de nosso amor por Deus. Amamos a todos porque amamos a Deus e porque sabemos que Deus nos ama, indistintamente, a todos. Nas palavras de Jesus, esse amor é indispensável para que sejamos “filhos de nosso Pai, o qual faz nascer o Sol sobre os bons e os maus e cair a chuva sobre os justos e injustos”.

É um amor que só brota em consequencia da verdadeira comunhão com Deus. É um amor que não requer causa, não escolhe objeto, nem busca reconhecimento. As dores de cada um são as dores de todos. Nossas humanas divergências não podem sobrepujar os nossos indissolúveis laços divinos de irmandade e de fraternidade.

Por que haveríamos de ser assim, perguntaríamos a Jesus. No mesmo sermão, ele nos responde: “Porque, se vós não amais senão os que vos amam, que fazeis de especial? Não fazem isso também os pagãos?”
Para fazermos jus ao Reino do Céu, Cristo nos impõe esse transcendente e quase sobre-humano sentimento de amor: “Sede, pois, perfeitos, como vosso Pai Celestial é perfeito.”

Faz sentido. O ódio é um sentimento que se alimenta do sentimento com que é retribuído. O ódio só gera mais ódio. Ele só perde a força e se dissolve quando é respondido pelo amor.

Este é o verdadeiro amor cristão e foi em nome dele que Jesus se deixou martirizar na cruz. Nas palavras de Spinoza, para Jesus, as mentes não são conquistáveis pelas armas, mas sim pela grandeza da alma.

E, imbuído dessa grandeza, ele cedeu a sua vida por nós.

Artigo publicado no jornal “O Estado de São Paulo” em Abril de 2004.

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